O sistema de rastreabilidade dos resíduos industriais no Estado de São Paulo entrou em colapso. Embora o governo paulista sustente um discurso de liderança na agenda sustentável, dados técnicos e estimativas do setor revelam uma realidade alarmante: mais de 50% dos resíduos perigosos e hospitalares produzidos no Estado não têm comprovação de destinação final.
Milhões de toneladas de materiais desaparecem entre a origem e o suposto destino, sem que os órgãos de controle saibam exatamente onde foram parar. A cadeia que deveria ser rigidamente monitorada — da geração ao transporte e tratamento — se tornou uma zona cinzenta marcada por subnotificação, falhas de auditoria e ausência de fiscalização em campo.
Mesmo com ferramentas oficiais como o Manifesto de Transporte de Resíduos (MTR), o SIGOR da CETESB e a obrigatoriedade do CADRI e da classificação pela norma ABNT NBR 10004 (Classe I – resíduos perigosos), o que se vê é um controle documental sem lastro físico. O sistema registra informações, mas não garante que o material chegou de fato ao destino declarado. Na prática, a rastreabilidade termina no papel.
Resíduos que somem e um sistema que não vê
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que menos de um terço do volume real é declarado oficialmente. O restante circula em um mercado paralelo de descartes clandestinos, que movimenta milhões de reais e opera à margem da lei ambiental.
A gravidade do problema veio à tona após o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, flagrar áreas de descarte irregular na região do Jardim Pantanal durante um sobrevoo recente. O episódio escancarou a fragilidade do sistema de controle e a falta de integração entre municípios e Estado.
A CETESB admite falhas no modelo vigente, enquanto o Ministério Público de São Paulo conduz investigações sobre fraudes, rotas clandestinas e desvio de resíduos industriais e hospitalares.
Consequências em cadeia
O impacto da falha de controle não se restringe ao meio ambiente.
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Ambiental: contaminação de solos, rios e lençóis freáticos.
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Saúde pública: exposição direta de comunidades a rejeitos tóxicos e hospitalares.
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Econômica: concorrência desleal entre empresas que cumprem e as que burlam a legislação.
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Reputacional: o discurso de sustentabilidade paulista se choca com a realidade operacional.
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Política: a fragilidade do sistema expõe contradições em um Estado industrial em ano pré-eleitoral.
Por que os resíduos desaparecem
Entre as principais causas apontadas pelos técnicos estão:
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Cadeia operacional extensa e fragmentada, com múltiplos intermediários.
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Ausência de auditorias independentes e inspeções presenciais.
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Sistemas baseados em autodeclaração, sem comprovação física obrigatória.
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Penalidades brandas diante do lucro da irregularidade.
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Falta de integração entre MTR, SIGOR, CADRI e bancos de dados da CETESB.
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Fiscalização deficiente sobre transportadoras e empresas receptoras.
O que propõem os especialistas
As soluções passam por auditorias externas independentes, cruzamento automático de dados, divulgação pública de relatórios auditados e aplicação de sanções efetivas, incluindo suspensão de licenças. Tecnologias como blockchain, IoT e geolocalização de cargas são vistas como ferramentas essenciais para dar transparência à cadeia. Outra medida defendida é a implementação do balanço de massa, que compara o volume gerado com o volume tratado, impedindo que toneladas de resíduos “sumam” entre etapas.
O dilema que o Estado evita enfrentar
O avanço industrial paulista convive com uma pergunta incômoda: é possível celebrar liderança ambiental sem saber para onde vai o lixo tóxico e hospitalar produzido no próprio território?
Enquanto a resposta não vier acompanhada de dados auditáveis e verificações em campo, o discurso de sustentabilidade permanecerá preso ao papel — o mesmo papel onde se perde a rastreabilidade do lixo invisível de São Paulo.
Outro lado
A reportagem procurou o Governo do Estado, a CETESB e a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (SEMIL) para esclarecimentos, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.





